o semáforo fechou e meu táxi parou bem na frente do seu prédio

Luana Silva
3 min readOct 4, 2022

contei três andares pra cima e cinco varandas pra esquerda até alcançar a sua janela.

fiquei me perguntando, ao notar que a luz da sala estava acesa, se você ainda troca os temperos e acaba colocando cravo na sopa ao invés de orégano quando a ansiedade está marcando presença. ou se você ainda usa aquela camiseta velha de cidadão kane quando precisa se sentir mais firme.

é que já faz tempo demais e olhando pra sua janela, finalmente percebi isso: o tempo voou, e agora já somos outros.

consigo respirar melhor agora porque acho que aquilo tudo finalmente ficou pra trás. todos aqueles sentimentos confusos, a bagunça que você me deixou pra arrumar sozinha, a sua fuga e o seu grande passo.

fico especulando que você ainda toca na varanda, à noite, e que os seus vizinhos odeiam pra valer esse seu hobby.

tento imaginar se vocês dois dançam na cozinha, se são felizes ali, naquela caixa de concreto pré-moldado tão modernista que deixaria niemeyer cabisbaixo. acho que a gente nunca seria feliz ali, falando sério. mas eu torço para que vocês sejam. torço mesmo, pode acreditar.

nunca foi o meu sonho morar há duas quadras da praia, passar o dia inteirinho debruçada numa prancheta ou me acomodar. acho que tu sempre soube disso, e agora, eu também sei.

sabe que dezembro passado eu estive lá? é esquisito como alguns lugares parecem guardar as nossas memórias mesmo quando a gente pensa que já jogou tudo fora. talvez a decoração fosse a culpada, estava tudo igualzinho antes. menos eu.

e eu a ouvi falar sobre você e a sua nova vida. sobre como você está tendo a vida que sempre quis e que ainda assim, se esforça pra ser presente. e concordei que, apesar dos pesares, você está fazendo o melhor possível para ser uma versão melhor de si mesmo. uma versão mais sincera, quem sabe? tudo é possível.

naquele tempo, penso que tentei ser o mais forte que pude. e talvez, tenha extrapolado as barreiras para parecer bem. doía tudo, por inteiro mesmo. ser vulnerável é uma parada que ainda estou aprendendo a cultivar.

todos esses anos, tive medo que lá no fundo, estivesse procurando por você em outros sorrisos ensolarados. mas agora, fique sabendo que não tenho mais. descobri que durante esse tempo todo, eu não estava te procurando. estava me procurando. e agora, me encontrei, ufa.

o que estou querendo dizer é que, observando a sua vida assim, à distância, como uma espectadora obrigada pelas circunstâncias do trânsito no horário de pico, vejo que não sinto mais coisa alguma. nem rancor, nem dor, nem nostalgia ou curiosidade: não há espaço para esses sentimentos dançarem aqui dentro. por isso acredito que escrever sobre isso também é uma forma de navegar.

enquanto esse pensamento me atravessa, uma silhueta repousa no peitoril da janela. nem preciso forçar a vista pra saber que é você, com uma caneca na mão, suspirando para o trânsito, que começou a se movimentar de novo, a passos lentos.

antes de perder a sua janela de vista, olho uma última vez só pra comprovar que você está mesmo usando aquela velha camiseta de cidadão kane.

ironicamente, essa é uma citação de cidadão kane.

--

--